quarta-feira, 18 de julho de 2018

Categorias do ser

Eu
que supondo ver
não via.

Eu

que na categoria
da paixão me
feria.

Eu

que da substância
me esquecia.

Eu
que preso aos
acidentes,
infelizmente,
me perdia.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Vento, vento caxinguelê

Corre suave o vento sobre
as folhas banhadas do sol de verão.
E elas, em um balanço quieto,
vêm e vão.

Desarranja os cabelos da moça.
E ela certa de que os acertou,
desarranja-os ainda mais.

Ao mesmo tempo,
invade os cômodos
de uma casa velha.

Vasculha de um canto a outro
e refresca a quietude alerta
das aranhas.

Também passa,
como se não passasse,
pelos distraídos que assistem
à televisão.

Entra e sai.
Vem e vai.

Qual um menino de um
lugar a outro,
e como tal brinca
com as folhas e
com os distraídos
e com os cabelos
das moças e
dos moços.

De longe,
escuta-se, que tempo!

– Vento, vento
caxinguelê
cachorro do mato
quer me morder.

Ah!
São os meninos
que se divertem
sob o colorido mágico
das pipas que
empinam no céu.

– Vento, vento...

terça-feira, 3 de abril de 2018

Contabilidade

Neide Archanjo

As perdas
as dores
as faltas
as feridas.

As festas
os amores
as graças
os marfins.

É apenas a vida,
ai de mim!

sábado, 31 de março de 2018

OFF

Neide Archanjo

Dos teus braços
talvez dos teus olhos
vem esta ternura
que minha alma
alcança.
Mas pouco sabes de mim.

O amor nunca sabe
e é melhor assim.

terça-feira, 6 de março de 2018

Ricardo Reis



Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                   (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                   Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                   E sem desassosegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                   E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                   Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                   Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                   Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
                   Pagã triste e com flores no regaço.

Pôr-do-sol


Fim de tarde.

E o pôr-do-sol,
meu.

E a estrela vespertina,
de entardecida lembrança.

E a retomada
de um dia inteiro,
de um ano inteiro,
de uma vida inteira.

E, aos poucos, põe-se
escondido com o sol
esse meu insignificante,
silencioso e longo olhar.

sábado, 7 de outubro de 2017

Os ombros suportam o mundo

Carlos Drumond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.