Tive meu encontro com um nome célebre, perdido, citado em nota de rodapé, a título de curiosidade. Era o nome de Baldassare Castiglione, autor de O Cortesão. Aqueles modos pomposos do mundo aristocrático que me eram dados pelas grandes gravuras dos capítulos sobre a alta renascença impressionavam-me o espírito. Eram cavaleiros, guerreiros, nobres que se punham em face da morte em defesa dos valores tão obscuramente prezados pelo adolescente que eu era: honra, coragem, justiça.
Quando descobri ser este o manual de comportamento de seres tão elevados, quis comprá-lo imediatamente. Entrevia em seus ensinamentos toda a distinção por mim imaginada. Não achei o livro, mas me contentei com outro parecido: A arte da prudência, de Baltasar Gracián. Folheei alguns e me encantou o estilo barroco, cheio de contorções sintáticas, malabarismos que ocultavam o sentido dos conselhos e os fazia parecer verdadeiros segredos de iniciado -- vi na adoração daquele estilo o caminho necessário para a iniciação; só os homens que amassem aquelas verdades teriam acesso a elas pela perseverança. Deliciava ao reler aforismo e não compreender nada. Foi o primeiro livro que li por liberdade, seguido do Rei Lear.
Como cheguei até o livro de Shakespeare? Não me acode lembrança. Mas é possível que tenha escutado ser ele o maior dos escritores, aquele que continha todo o conhecimento do céu e da terra. Busquei-o por vontade de me distinguir dos outros. Assim correram os meses, quando alcancei os quinze anos e cheguei no ensino médio. Nada tinha lido de verdade senão dois livros. De poesia, tudo ignorava e qualquer verso rimado me parecia extraordinário. De onde me veio este interesse? Foi, então, que conheci naquele ano um modelo, José Carlos França.
França, meu grande professor. Quando era criança, brincando no pátio da escola, me puxava pelo braço e dizia de cor algum verso misterioso seguido da assinatura do autor. Causava-me impressão um homem que decorasse tantas poesias e as recitasse como parte da própria fala, sem afetação.
Eu ria, mas o admirava em segredo. Seria meu professor quando alcançasse o ensino médio e foi neste ano que se operou sua influência essencial e permanente. França, meu grande professor. Suas aulas de filosofia, depois de convertido ao catolicismo, eram missas sem intróito, sem kyrie, sem comunhão: eram compostas tão somente de homilia, e também de leituras, que não se afastavam em nada do efeito de um evangelho. O maior orador que já vi. Diante dos alunos se transfigurava e todo o organismo se contraía para a penosa expressão da verdade. Ele é da linhagem dos Pe Antônio Vieira. Um pregador, um orador sacro aparelhado de todos os recursos da dicção profana, da piada erótica à invocação dos santos.
Para nós, molequinhos imberbes com a cara furada de bexigas, era um tipo de herói: de autêntica rusticidade caipira, mas de elegância verdadeira; e também verdadeiro poeta, capaz de mover nossos sentimentos mais nobres pela modulação mágica de voz e gesto. Naqueles anos de convívio plantou em meu coração todos os impulsos necessários para que eu me tornasse um homem culto, sem me afeminar, mas, pelo contrário, fazendo da cultura uma maneira de me converter em um homem adulto, uma potência viva. Anos depois concluí que naquela pequena escola de interior existia um homem de letras que seria admirado por La Bruyère, porque "seus discursos elevavam o espírito e inspiravam sentimentos nobres e de coragem".